Crise gravíssima, cooperação reforçada
Tornou-se evidente, há muito, que é gravíssima a crise em que vivemos; e não existem motivos para admitirmos que ela vai abrandar no curto prazo. Contrariamente ao que se afirma com frequência, este agravamento não constitui surpresa, tal como não nos surpreendem as posições que ele suscita.
Há muitos anos, algumas figuras dignas do maior crédito vêm alertando, fortemente, para o descalabro económico-social e para as nossas debilidades perante ele; debilidades políticas, sociais, económicas e até culturais. Nos meios católicos, realça-se o saudoso Prof. Ernâni Lopes, que «previu», há mais de quinze anos, o aumento incontrolável do desemprego, a diminuição dos salários, a quebra do crescimento económico, o aumento dos défices económicos e financeiros e da dependência do exterior… Desgraçadamente, essas previsões estão a confirmar-se, em cada dia que passa; e até parece que alguns estão altamente empenhados em que se verifiquem os cenários mais negativos, admitidos por aquele ilustre Autor no caso de não serem tomadas medidas adequadas.
A conjuntura mundial, a globalização avassaladora, o capitalismo desregulado, a par das limitações das instâncias comunitárias (UE) e internacionais envolveram-nos num cerco asfixiante. Mas vários fatores internos vêm reforçando o cerco, fazendo-nos correr o risco de fazer o jogo das forças opressoras que nos destroem. Os partidos políticos digladiam-se na luta pelo poder, como se vivêssemos em condições perfeitamente normais, em vez, de procurarem juntos as soluções possíveis. Pelo contrário, vão-nos habituando a, quando estão na oposição, contestarem as medidas que tomariam se fossem governo; e adotarem, no governo, as que contestariam se fossem oposição. A história dos últimos governos e respetivas oposições é muito elucidativa a este respeito.
Nesta hora tão difícil para o país precisamos de sinais de esperança. Felizmente, existe um universo de esperança vital, não muito valorizado porque ofuscado pelos clamores: trata-se dos trabalhadores e empresários que lutam afincadamente pela viabilização de suas empresas e outras organizações; trata-se de inúmeras famílias, instituições, grupos de voluntariado e também serviços públicos votados à sobrevivência pessoal e coletiva; e trata-se, em suma, do conjunto – imenso – de cidadãos/ãs que enfrentam dignamente as maiores dificuldades. No entanto, apesar de tamanha dedicação – marcada, não raro, por expressões anónimas de heroísmo extremo – persistem e agravam-se os casos de carência grave, de exclusão social e de marginalidade. A par dos pobres tradicionais, aumenta constantemente o empobrecimento de famílias que, outrora, nunca puseram tal hipótese. E, enquanto isso, uma elevadíssima e crescente percentagem de jovens encontra-se bloqueada no acesso ao trabalho e à vida normal, em termos de autonomia e desenvolvimento pessoal. Não admira por isso que persista o submundo incontrolável dos comportamentos marginais, incluindo o crime, organizado ou não; a conflituosidade familiar, social e política atingiram níveis tão preocupantes quanto desconhecidos; e o número de suicídios constitui, para todos nós, um alerta permanente que não podemos descurar.
Como agir perante esta gravíssima situação? – No âmbito da Cáritas e de outras instituições, como a Sociedade de S. Vicente de Paulo, vêm sendo levadas a efeito reflexões e experiências várias. Deixo aqui assinaladas apenas três linhas de rumo de caráter operacional, que parecem fundamentais: a ação organizada a nível local – freguesia ou paróquia – na consciência dos problemas sociais e na procura das respetivas soluções; a estreita articulação entre a ação local, a concelhia e, na perspetiva eclesial, a diocesana; e a articulação entre os âmbitos concelhio ou diocesano e o nacional. Estas linhas de rumo baseiam-se na aplicação do princípio da subsidiariedade, que é fundamental na doutrina social da Igreja. À luz dele, não se transferem, para o município nem para a diocese, os problemas que podem ser resolvidos a nível de freguesia ou paróquia; e não se transferem, para o nível nacional, os que podem ser resolvidos a nível municipal ou diocesano. Impõe-se, entretanto, nunca perdermos de vista que as decisões políticas fazem parte integrante da solução dos problemas sociais. Por isso, é indispensável que a própria ação social da Igreja, nos níveis paroquial, diocesano e nacional, inclua também a intervenção junto dos órgãos de decisão política; tal intervenção pode revestir a forma de propostas, de diálogo, de insistência persistente, ou qualquer outra, até se conseguirem resultados tão justos quanto possível.
A ideia-chave, na crise atual, é porventura a cooperação incondicional em todos os domínios de ação e em todos os níveis de decisão. Por sua natureza, a cooperação é inseparável do pluralismo e da divergência; ela carateriza-se, exatamente, pela procura das convergências possíveis, quaisquer que sejam as diferenças e divergências.
Eugénio Fonseca, presidente da Cáritas Portuguesa