Porque é que a luta global contra a fome deve estar no topo das prioridades?
Um Futuro Sem Fome
“Reflexão ética: Porque é que a luta global contra a fome deve estar no topo das prioridades?”
Discurso de Cardeal Oscar Rodriguez Maradiaga em Viena (Áustria)
no Congresso sobre a Fome e a Segurança Alimentar Sustentável (1-2 de Junho de 2012)
Não é preciso muito esforço para responder à pergunta: “Porque é que a luta contra a fome mundial deve ser uma prioridade nos dias de hoje? “. Obviamente porque a comida é a necessidade vital mais básica e também o desejo genuíno e a alegria de toda a humanidade. No entanto, o mundo em que vivemos hoje não encontrou uma solução para erradicar a fome da face da terra.
Quando Sua Santidade, o Papa Bento XVI, interveio na Cimeira Mundial sobre Segurança Alimentar, em 2009, chamou à fome “o sinal mais cruel e concreto da pobreza “, assumindo uma proporção tal que torna inaceitáveis a opulência e o desperdício . A insegurança alimentar acontece não pela falta de comida, mas por uma série de causas que – especialmente em tempos de crise económica – são ainda agravadas com aumentos nos preços dos alimentos, com a redução de recursos económicos disponíveis para os mais pobres e com o seu o acesso limitado aos mercados. Há no planeta recursos suficientes para alimentar todas as pessoas. Na verdade, “são produzidos alimentos suficientes à escala global para satisfazer, quer as necessidades actuais, quer as necessidades previstas no futuro” . E, no entanto, quase um bilião de pessoas passa fome no mundo. Torna-se, assim, claro que a causa da fome não é a falta de recursos materiais, mas sim a ausência de condições para a justiça.
Por todo o mundo, a Cáritas tem testemunhado as graves consequências de tomadas de decisão irresponsáveis, de um sistema económico e financeiro sem ética que dirige as decisões políticas, de empresas que exploram as terras e os homens e as mulheres que nelas vivem, modelos de produção e comercialização em larga escala que prejudicam os pequenos produtores e comerciantes locais, de estilos de vida excessivos nos países mais prósperos, da transmissão automática da pobreza de geração em geração, e da disparidade crescente nos níveis de desenvolvimento entre países e dentro deles. Os extremos do nosso mundo – este gritante contraste entre pobreza e riqueza – podem perigosamente fazer-nos olhar para a insegurança alimentar como uma realidade estrutural típica dos países mais pobres. Não, meus irmãos e irmãs, a fome não é uma fatalidade e muito menos o destino dos últimos!
Lembremo-nos de que a segurança alimentar não responde apenas às necessidades materiais do ser humano: ela também tem valor espiritual e transcendente.
Toda a criação precisa, em primeiro lugar, de alimento. A pessoa humana é um grande mistério da criação, na medida em que é a união do corpo terreno e da alma celestial. Na terra, o alimento terreno é necessário para manter o corpo e a alma juntos, de forma a cumprir-se este mistério. Na Terra, o corpo tem de ser um verdadeiro lar para o espírito eterno; na eternidade, a alma tem de ser a casa do corpo ressuscitado.
A Oração do Senhor, o “Pai Nosso”, é a oração dos tempos escatológicos, o tempo da realização da vinda do Reino de Deus. Nela nós rezamos – como única necessidade terrena – pelo “pão nosso de cada dia”, o alimento de cada dia, que nos leva ao pão eterno de Amanhã. Nós rezamos por ele como um bem comum – o “nosso” pão de cada dia – para ser partilhado em união e solidariedade. No que toca à Segurança Alimentar, nós lidamos com conquistas sobre o fim dos tempos da criação e da humanidade na terra.
A alimentação é a única necessidade terrena que as Escrituras referem constantemente: no momento da Criação (Gn 1,27-28); durante a peregrinação do povo judeu no deserto do Sinai (Ex); é uma das tentações de Jesus no deserto; a mais bela, a multiplicação dos pães (Jo 6), indica o mistério da “suficiência e da plenitude” do alimento terreno e a responsabilidade da humanidade em fornecer comida para todos (“dai-lhes vós mesmos de comer” Mt 14,16). O pão da Eucaristia aponta para a santidade interior deste dom terreno que nos foi oferecido na imolação, um sacramento perene para que na terra continue a ser visível a encarnação da Palavra de Deus através da simbologia dos alimentos. Isso mostra que a nossa vida, na verdade a vida de toda a criação, se realiza no dar e receber um do outro como alimento para o corpo e o espírito.
Falta de alimentação para os pobres é a situação mais “não-eucarística” da Terra. Um pecado grosseiramente humilhante da humanidade nos tempos modernos, trevas na civilização humana. Precisamos de agir de forma corajosa – local, nacional e internacionalmente – para lidar com esta escuridão “não-eucarística” fim de promover uma cultura de vida eucarística entre a humanidade e a Criação.
A alimentação é a necessidade mais simples, de um povo simples, para uma civilização simples na terra. O direito à alimentação “responde principalmente a uma motivação ética: ‘dar de comer a quem tem fome’ (cf. Mt 25,35), um princípio que leva a uma partilha de bens como um sinal do amor de que todos nós precisamos (…) este direito primário à alimentação está intrinsecamente ligado à (…) defesa da vida humana” , o alicerce sobre o qual todo o edifício dos direitos humanos se constrói.
A pobreza é um escândalo e a fome é uma tragédia evitável que deve ser contestada pelo combate às suas causas estruturais, no longo prazo. Melhorar a segurança alimentar não é uma questão que pode ser resolvida por uma equação quantitativa: “maior produção de alimentos = maior segurança alimentar”. A insegurança alimentar deriva de um outro problema maior, a desigualdade no mundo inteiro, e pede uma resposta de crescimento inclusivo – conter a especulação, melhorar a agricultura e a protecção social nos países em desenvolvimento são alguns aspectos, apenas para começar.
[Segundo dados oficiais, o primeiro Objectivo de Desenvolvimento Milénio, que estabelece um marco na luta contra a fome e a pobreza, poderá ver concretizado a sua meta de, em 2015, reduzir para metade a proporção de pessoas que sofrem de fome. No entanto, as disparidades globais são ainda muito fortes.] Uma demonstração dramática desta desigualdade, num século de prosperidade para o mundo desenvolvido, é a fome terrível que atingiu a Somália e a grande crise alimentar no corno da África, deixando pelo menos 10 milhões de pessoas a necessitar de ajuda, metade dos quais são crianças. Na Somália, a falta de governo e os vinte anos de conflito contribuíram para potenciar os efeitos da seca, causando uma severa crise humanitária.
Tememos que um novo desastre, de dimensões semelhantes, esteja a iniciar-se na África Subsaariana, na zona do Sahel. A experiência que temos, enquanto rede Cáritas, diz-nos que se está a começar, nesta região, uma grande crise que irá colocar 15 milhões de pessoas na fome. As previsões para os próximos meses são alarmantes. Mas o que ainda é mais dramático é que esta é uma crise “antiga”, inveterada e bem conhecida da comunidade internacional. Já na década de 70, fotografias de crianças a morrer de fome fizeram as manchetes dos noticiários do mundo inteiro. No entanto, as tentativas levadas a cabo pela comunidade internacional não ofereceram soluções duradouras. Períodos recorrentes de seca, más colheitas e o aumento do preço dos alimentos têm vindo a reduzir os meios de sobrevivência das pessoas. Neste ano, a crise alimentar foi agravada pela violência armada no Mali, que levou a deslocamentos maciços e à migração de pessoas na região. Pode e deve de ser feito mais. Apelamos a que todos os actores humanitários e os governos preocupados intervenham, de forma criativa e afirmativa, com uma resposta rápida e adequada, a fim de proteger os mais vulneráveis do Sahel e proporcionar-lhes meios de subsistência.
Um futuro sem fome! O título deste congresso soa a utopia. Mas quando olhamos para este escândalo global que deixa quase um bilião de pessoas sem alimentos, nós, enquanto Cáritas, temos de ser utópicos e proféticos. Hoje, o combate à fome significa garantir que as crianças têm nutrição adequada para que possam crescer como membros activos e produtivos das suas sociedades. Isto significa projectos de agricultura e outros programas de desenvolvimento, para que, um dia, as comunidades que passam fome sejam capazes de se alimentar. Um país com uma população subnutrida nunca irá desenvolver uma sociedade coesa, uma cultura vibrante, uma economia forte e uma democracia participativa. Em suma, garantir a segurança alimentar e ajudar as pessoas a alimentar-se não é apenas um imperativo moral, é também uma boa estratégia para o desenvolvimento.
Por isso olhamos com esperança para a Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável, que terá lugar no Rio de Janeiro, dentro de pouco mais de duas semanas. Nessa conferência, líderes mundiais e milhares de decisores políticos, representantes do sector privado e da sociedade civil, irão reunir-se para repensar a forma de reduzir a pobreza e de alcançar uma maior equidade social e maior protecção ambiental. Se nos lembrarmos de que os governos das economias mais avançadas gastaram recursos notáveis e imaginação na tentativa de resolver a actual crise financeira – e mais especificamente para salvar o sistema bancário que contribuiu para a crise através da especulação sem escrúpulos – não podemos deixar de lhes perguntar se uma imaginação e mobilização de recursos semelhantes serão postos em prática para garantir o acesso à alimentação de um bilião de pessoas e erradicar a fome. Pedimos aos líderes mundiais na Conferência do Rio que adoptem uma abordagem holística para o desenvolvimento sustentável, baseada num modelo ético em prol do bem-estar, que pratica a justiça, a equidade, a sustentabilidade e a responsabilidade partilhada, e que coloca os mais pobres no centro do nosso interesse comum.
Um futuro sem fome – pode tornar-se uma realidade se a nossa fome for uma fome de partilha, solidariedade e justiça.
Desejo a todos, queridos irmãos e irmãs, promotores e participantes deste Congresso que hoje se inicia, discussões muito proveitosas e com o maior sucesso. Que o sopro do Pentecostes inspire o nosso trabalho para um diálogo significativo, para uma melhor compreensão dos desafios da fome que temos entre nós, e um sincero desejo de mobilização, a todos os níveis, de modo que o futuro das próximas gerações seja realmente sem fome.
Viena 1 de Junho de 2012