O Arquivo Histórico da Cáritas Portuguesa
A memória de uma organização global na sociedade portuguesa.
Desde 2019 que o UCP-CEHR se encontra a organizar o Arquivo Histórico da Cáritas Portuguesa, na sequência de um acordo de colaboração com a Direção da Cáritas Portuguesa que se estenderá até 2023. O objetivo principal consiste na preservação e na difusão da memória de uma organização que podemos classificar como global e que, ao longo de décadas, privilegia a atenção aos problemas sociais em Portugal. A relevância da memória, as organizações globais, os problemas sociais e o trabalho arquivístico do CEHR com a Cáritas Portuguesa constituem a estrutura deste breve texto.
São recorrentes as situações em que nos deparamos com a memória de acontecimentos ou de pessoas, no geral marcantes. Refiro-me à memória de experiências pessoais e coletivas, favoráveis ou traumáticas. Recentemente, foi celebrado o dia em que o período de democracia em Portugal superou o de ditadura. No início da invasão da Ucrânia pela Rússia, os acontecimentos que antecederam a II Guerra Mundial foram várias vezes recordados.
Em alguns casos, a importância da memória justifica tentativas de apagamento, de reconstrução e até de manipulação. A razão é simples: os acontecimentos passados, mais ou menos longínquos, são muitas vezes usados para tomar decisões e definir posições.
Os museus e os arquivos visam contribuir para os cálculos e as decisões que os sujeitos individuais e coletivos adotam. Esses espaços privilegiados da memória nas sociedades são complementados por outros, mais comuns, como os nomes das ruas ou dos equipamentos coletivos.
Na atualidade, as organizações são globais, mesmo quando possuem uma dimensão vincadamente local. Os meios de comunicação transportam de forma célere e a longa distância as notícias e os acontecimentos, mas também as ideias, os projetos, as agendas ou até as emoções. Os cruzamentos e os efeitos multiplicadores daí resultantes são inevitáveis, mesmo quando não desejados. As críticas, os contributos e os debates trazem vantagens, permitem reconstruir e transformar ou amplificar o alcance das escolhas iniciais.
O mundo atual é traduzível pela já longínqua e conhecida expressão de “aldeia global”. Também as organizações de hoje são necessariamente globais.
As formas de estruturação das sociedades comportam problemas. Na atualidade, os refugiados, as alterações climáticas, as desigualdades, a pobreza, a exclusão, o desemprego, as condições de alimentação e de habitação constituem alguns dos problemas sociais com que nos confrontamos. A discussão, a avaliação e a intervenção sobre as suas causas e conexões mútuas requerem a conjugação entre modelos de ação, plataformas de participação, recursos de variada ordem e meios de organização.
Na Cáritas Portuguesa conjugam-se todas as diferentes dimensões anteriormente referidas. Desde os seus primórdios que a Cáritas constitui uma organização global, numa sociedade, então, intencionalmente afastada ou isolada da Europa, e que se dedica a uma vasta gama de problemas sociais, à perceção das suas causas, à transformação das suas condições estruturais e a uma atuação continuada sobre os seus efeitos inadiáveis. Desde as décadas de 1940 e 1950 aos dias de hoje, que os refugiados, os deslocados, as condições de alimentação e de habitação, a criação de emprego ou a exclusão são prioridades na Cáritas. O seu arquivo histórico permite transportar a memória dessas intervenções, demonstrar a evolução verificada nas vias de atuação e contribuir para redefinir linhas de trabalho atuais.
Possuir um património documental apenas armazenado ou amontoado torna-o ininteligível e constitui um peso por vezes insuportável. Mas, mesmo sem constituir a principal prioridade de uma organização, tratar dos papéis não manuseados no quotidiano de forma a permitir o seu acesso e a sua difusão permite rentabilizar a sua história em benefício da atualidade.
O trabalho do UCP-CEHR na organização arquivística tem consistido na descrição dos documentos, no seu reacondicionamento em boas condições de preservação e na criação de instrumentos online de pesquisa para acesso por parte da rede Cáritas, enquanto produtores e detentores, e dos investigadores, enquanto interessados nos seus conteúdos. Estamos convictos de que a Cáritas Portuguesa poderá ter no seu arquivo histórico, assim organizado, um instrumento de discussão sobre problemas sociais, percecionados numa lógica global, e um polo de dinamização cultural e de participação para a comunidade em geral.
Nuno Estêvão Ferreira,
Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa (UCP-CEHR)