Poder Perdoar
Pode ser dramático verificar como algumas consequências do nosso agir têm um carácter irreversível. Tanto que, se estivéssemos absolutamente cativos desta lógica, a nossa vida resumir-se-ia a umas poucas decisões. O resto eram consequências. Inexoráveis consequências.
E, falando sempre das consequências das nossas acções, ao darmo-nos conta de como muitas delas podem ser imprevisíveis, o sentimento que nos assalta é o do medo perante a incerteza. Ora, contra a imprevisibilidade, diz-nos a filósofa Hannah Arendt (1906-1975), temos um poder: o poder prometer1. E contra a irreversibilidade, outro poder: o poder perdoar2. De facto, numa linha que corresponderia ao irreversível duma nossa acção, o perdão surge como um corte, uma interrupção. Podemos recomeçar. E depende só de nós. É verdade que algumas situações são tão duras, tão penosas que nem parece que possamos perdoar, que consigamos perdoar. O Ir. Roger (de Taizé) dizia, a este propósito, qualquer coisa como: “Querer perdoar é já perdoar”.
Por vezes confundimos perdão com esquecimento. E até nos convencemos de que não conseguimos perdoar porque não esquecemos. O esquecimento tem pouco (ou nada) a ver com a nossa vontade: pode acontecer que esqueçamos o que não queremos e não consigamos esquecer o que queríamos. Vladimir Jankelevitch afirma claramente que esquecer não é perdoar3. E fala-nos da prova (o teste) do tempo: o esquecimento corresponde a uma continuidade; vai-se apagando a ofensa… O perdão, pelo contrário, irrompe como uma ruptura, uma descontinuidade. E a nossa vida tem, assim, a possibilidade de novos recomeços. Procurar compreender é, certamente, um caminho para poder desculpar. As coisas compreensíveis; ainda que não justificáveis. Mas fica sempre de fora o indesculpável. Só o perdão, diz Jankelevitch, pode perdoar o indesculpável. Cada um de nós tem este poder. O poder contra a irreversibilidade.
1 H. ARENDT, A condição humana, Lisboa 2001, Relógio d’Água 2001, 295-300. 2 Ibidem, 288-295. 3 V. JANKELEVITCH, Le pardon, Aubier Montaigne, Paris 1967.
Pe. José manuel Pereira Almeida, diretor da revista Cáritas