“Sonho de um Mundo Melhor”
À conversa com Mendo Castro Henriques
Organizador do livro “Thomas More e o Sonho de um Mundo Melhor”
Editorial Cáritas: Do livro “Thomas More e o Sonho de um Mundo Melhor”, do qual é organizador, que aspetos gostaria de salientar relativamente à sua forma e conteúdo?
Mendo Castro Henriques: Este livro é o fruto de uma colaboração entre a Universidade Católica e a Caritas Portuguesa com o apoio da editora Paulus. É uma antologia das 72 comunicações ao Congresso Internacional Tomás Moro e o Sonho de um Mundo Melhor que teve lugar na Universidade Católica Portuguesa, por ocasião dos 500 anos da publicação da “Utopia”.
O Congresso foi promovido pelo Centro de Estudos de Filosofia (CEFi) em parceria com o CECC, CEHR e CERC, da Católica, outras entidades académicas e da sociedade civil, para celebrar a pessoa e a obra de Thomas More (Londres, 7.2.1478 – Londres, 6.7.1535).
Thomas More foi um grande humanista e estadista da Renascença. Viveu entre uma época de expectativas pacíficas anteriores à Reforma de 1517 e a época subsequente de querelas. Sendo primeiro ministro de Inglaterra entre 1529 a 1532, após uma distinta carreira, opôs-se por dever de consciência ao rei Henrique VIII que ordenou a sua prisão e execução. Foi elevado aos altares em 1935 e declarado patrono dos estadistas e políticos por João Paulo II em 2000.
A obra “Utopia” é um marco do humanismo europeu pelas propostas sobre a propriedade, estado, família, sociedade, educação, igualdade dos géneros, guerra e paz; é o primeiro manifesto sobre as relações entre os povos da Europa e do Mundo; e revela a importância dos Descobrimentos Portugueses desde logo no protagonista da obra, Rafael Hitlodeu, apresentado como português.
A “Utopia” originou um género literário prosseguido nas utopias renascentistas, nas variações iluministas sobre a sociedade perfeita, nos socialismos utópicos no séc. XIX e as novas utopias e distopias do séc. XX analisados neste volume por diversos autores.
Editorial Cáritas: O Cardeal Patriarca, D. Manuel Clemente, na apresentação deste Livro, realçou a “Convicção ou Consciência” e a “Utopia ou Idealismo” de Tomás More como marcas de um caráter profundamente livre e libertador. Como vê estas palavras do Cardeal Patriarca?
Mendo Castro Henriques: O nosso bispo Manuel, Cardeal-Patriarca de Lisboa é um conhecedor profundo, como historiador e teólogo, do apelo de Thomas More e empenhou-se desde o primeiro momento nas parcerias que foram o Congresso e este livro. Creio que o destaque da “Convicção ou Consciência” relaciona-se com o facto de More ter agido dentro dos limites do aceitável pela consciência para que, na Inglaterra, houvesse consenso e não conflito. Quando considerou que Henrique VIII ia destruir o equilíbrio entre poderes do estado e da Igreja, deu a vida em testemunho das suas convicções.
A questão da” Utopia ou Idealismo” resulta de Thomas More ter lutado pelo ideal de um mundo melhor com ressonâncias apocalípticas, como ressalta D. Manuel Clemente. Este seu ideal comunitarista não prevaleceu nas circunstâncias da época, mas lavrou o terreno em que cresceram as sementes da revolução da consciência e ideais futuros.
Essa revolução da consciência tem, a meu ver, três elementos: o reconhecimento da morte, o reconhecimento da liberdade, e o reconhecimento da sociedade. O primeiro é transmitido à Renascença pelos clássicos e pelo Antigo Testamento. O homem aceitou a realidade da morte e construiu sobre o seu reconhecimento o sentido da sua existência. O segundo revela-se na descoberta da singularidade pessoal, através dos ensinamentos de Jesus, nos Evangelhos. O ser humano aceitou ter uma alma que podia perder, descobriu que existiam coisas piores do que a morte, e sobre isso fundou a liberdade. O terceiro decorre do que nos revela a consciência humanista moderna. A aceitação da realidade social dá ao homem uma coragem e uma força indomáveis no combate contra a injustiça e falta de liberdade.
Editorial Cáritas: Este livro surge no âmbito das Comemorações dos 500 anos do livro “Utopia”, de Tomás More, em resultado de um Congresso comemorativo dessa data. Passados tantos séculos, qual, afinal, a atualidade deste autor e desta obra?
Mendo Castro Henriques: Há 500 anos Thomas More apresentou uma nova sociedade na “Utopia”, cujo título completo é Sobre a Melhor das Repúblicas que existe na Nova Ilha Utopia. Com a linguagem da época, deu primazia a temas que hoje chamamos inclusão social, direitos humanos, luta contra a corrupção e cuidados com o planeta, temas das encíclicas e documentos do Papa Francisco, e do Concílio Vaticano II.
Essas mensagens da “Utopia” estão presentes nos caminhos atuais da cultura, da economia, da política, da religião, do direito e nos grandes debates contemporâneos sobre o trabalho, a saúde, as tecnologias, a ecologia, temas que se cruzam na Encíclica “Louvado Seja!”, do Papa Francisco, que atualiza no nosso tempo essa atitude.
Estes temas que são anúncio do futuro continuam a ser negados por correntes de opinião populistas e neoliberais. Os populistas renunciam à liberdade e glorificam o poder que é a realidade social, o neoliberalismo renuncia à sociedade e exige uma liberdade vazia.
Devido à pressão destas correntes, os Evangelhos têm de ser anunciados numa democracia de massas em que falta a atitude democrática. E a atualidade de Thomas More é dar-nos a certeza que devemos permanecer fiéis à tarefa de criar mais liberdade, mais dignidade e mais sociedade, e sem receios da morte e perseguição, nem do poder.
O conjunto de vozes neste livro, de que fui organizador, são muito importantes para descrever estes temas, chamar a atenção para a responsabilidade social das organizações, e manter o apelo por um mundo melhor.
Através de múltiplas vozes, este livro afirma a esperança contra o medo que destrói a dimensão utópica da vida, num caminho em que, modestamente, tentámos seguir o grande exemplo de Thomas More.