A Solidão existe e dói
Nesta última semana andei entre a infância e velhice. Estranho é que destes dois extremos com tanta coisa feliz para partilhar acabo por vir falar-vos de solidão.
Esta periferia existencial preocupa todos, mas vive escondida, quase como se temêssemos que o facto de falarmos dela a acordasse no N. pensamento e invadisse a N. vida.
Esta semana a solidão reinou no reino das perguntas e muitos me perguntaram sobre os cuidados, as ações e os serviços prestados para uma velhice sem solidão… Um envelhecimento mais acompanhado, menos forçado, menos condicionado por esta “doença”.
Que dizer?… Primeiro que tudo que temos de estar atentos. A solidão nem sempre coincide com isolamento … é um grito que muitas vezes não sabemos ouvir. Há pessoas que vivem isoladas e não se sentem sós, e outras que se sentem sós e estão cercadas de outras pessoas. Hoje há já múltiplos estudos, projetos e atividades para combater o isolamento e a solidão. Há uma enorme aposta na inovação – muita dela empurrada pela pandemia. Há fantásticos exemplos… nem tudo pode ser mau. Mas, a verdade é que corremos também o risco de fechar a própria da solidão e acondicioná-la como uma consequência da velhice ou de uma velhice abandonada.
A verdade dos dias diz-nos, contudo, que a solidão está mais em roda livre do que se espera. Pode ser uma solidão ativa que se desloca de transportes públicos e se apresenta ao serviço todos os dias. Pode até ser uma solidão que sorri e diz bom dia. Que vai à padaria ou faz o jantar par a família. Na verdade, cuidar da solidão é cuidar da pessoa e a pessoa só não tem idade, não tem género, não tem profissão ou estrato social. É, pura e simplesmente, uma pessoa que precisa de outra pessoa que escute, que pare, que se envolva.
Um dos mistérios que a humanidade mais procura resolver é o do rejuvenescimento. Gastamos rios de dinheiro em investigações, cosméticos, ginásticas, programas disto e daquilo para reverter o envelhecimento. A nossa cultura meteu no seu ADN que o ideal é evitar a velhice de todas as formas que forem possíveis. Ninguém quer ser velho, porque apesar de todos podermos ter palavras de circunstância sobre o quanto os velhos são maravilhosos o melhor do mundo continuam a ser as crianças e os anos de ouro são os da juventude. Ora isto leva-nos a olhar para o lado quando o tema é cuidar da velhice e dos velhos. Não investimos o suficiente no cruzamento de gerações, na criação de espaços de partilha de saberes e experiências, no encontro de hábitos, na troca de palavras e de tesouros.
Envelhecer é um processo natural, sentirmo-nos sós é um problema social … A solução não está em reverter o envelhecimento, apesar do investimento que a ciência tem feito, está nos afetos e na oportunidade de conviver e usar as “riquezas de todas as idades. Também não está na intergeracionalidade obrigatória. As obrigações são mais difíceis de cumprir. Está na partilha de tesouros … e às vezes nem é tão óbvio… O combate ao isolamento dos jovens fez-se muitas vezes com os meios online, criando a ilusão de que se combate a solidão como se combate o isolamento. Os resultados da “digitalização” contra a solidão isolou os jovens mais do que estavam … A “digitalização” dos idosos em tempo de pandemia criou oportunidades que ninguém acreditava ser possível, e alargou o seu mundo. Sobre isto aprendemos todos muito em dois anos
E que diremos dos últimos 100 dias?…
Estes dias foram, para muitos, dias de medo, dor e solidão. Hoje não consigo pensar em solidão sem pensar no que sofrem todos os Ucranianos, de famílias desfeitas, que tiveram de se esconder nas caves, abrigos e outros espaços claramente insalubres? Na maioria não estão sozinhos, mas imagino que a solidão os acompanha. São vítimas da pior crise humanitária na Europa desde tempos de outras guerras. Dados das Nações Unidas dizem que já morreram mais de 4 mil civis, que já fugiram14 milhões e que 15 milhões precisam de ajuda humanitária
Pois… a solidão corrói quando atinge qualquer pessoa, em qualquer idade, por muitas crises (pessoais, familiares ou humanitárias), de qualquer condição social. Combatê-la pode acontecer bem perto…pode ser obra de uma instituição. A Cáritas quer fazê-lo …. Mas pode ser cada um de nós.
Temos de a encontrar, a começar por quem está perto de nós.
A pandemia trouxe-me a clareza do verbo esperançar, mas em relação ás solidões que hoje observamos ou vivemos, o que importa é nunca desesperançar.
Rita Valadas
Presidente da Cáritas Portuguesa
Crónica emitida no domingo, 5 de maio de 2022, no espaço “A Opinião”, na TSF