Viagem ao Sol
É um documentário de Ansgar Schaefer e Susana de Sousa Dias, que retrata as experiências e traumas de 5500 crianças austríacas trazidas para Portugal após a 2ª Guerra Mundial e foi apresentado dia 6 no festival IndieLisboa.
No fim da apresentação senti-me grata por este registo que nos acorda e convoca, baralhada com algumas das experiências relatadas e esmagada pela similitude entre o pós 2ª GG e o que hoje sucede aqui tão perto, a leste.
A descrição do sofrimento daquelas famílias, pela voz de algumas crianças, hoje idosos, e o que hoje vemos acontecer, novamente na Europa, tem as mesmas imagens de destruição, o mesmo despotismo e as mesmas vítimas… Idosos que já conheceram outras guerras, pais que prescindem da família para proteger os mais vulneráveis e crianças a quem são negados quase todos os direitos . Uma guerra incompreensível, destruidora de vidas, de valores, de pessoas de todas as idades apanhadas num Tsunami de violências que expolia o futuro em que acreditavam…
Um documentário que me deixa sem saber qual o caminho mais eficiente para reagir ao que nos acrescenta uma enormidade de vulnerabilidades e convoca todos.
Talvez nem todos saibam, mas a Europa do pós guerra não era igual aquela que conhecemos e esta iniciativa que a Cáritas coordenou em Portugal para receber cerca de 5500 crianças (maioritariamente austríacas) é o primeiro passo da história da Cáritas em Portugal. Não foram 5500 histórias de sucesso, mas as famílias portuguesas voluntarizaram-se, de forma organizada, correspondendo a um apelo da Igreja para receber crianças, cheias de vulnerabilidades familiares e com problemas de saúde, na sequência da guerra e que precisavam de paz, sol e afeto. A importância deste gesto ainda hoje é reconhecida pela Áustria, como nos tem sido manifestado pelos Embaixadores em Portugal e este documentário é um importantíssimo testemunho.
As imagens são maioritariamente construídas a partir fotografias e filmes do espólio das crianças e das famílias e de registo de testemunhos. Muitas destas crianças acabaram por ficar em Portugal e outras tantas voltaram muitas vezes. O guião deste documentário e a sua apresentação, fazem uma ligação natural ao que hoje se passa … É assustadoramente evidente a analogia do que se passou e a evidência da “mesma” dor.
As primeiras imagens dos bombardeamentos de então, são idênticas às de hoje, apesar de, as de hoje, não serem só a preto e cinzento… Hoje há cor, mas a cor não alegra… só assusta.
Ontem como hoje sente-se angústia, tristeza, desespero, insegurança… É como se uns tivessem direito a viver e outros não.
Quando nos debatemos por não termos respostas para as consequências na vida das nossas crianças e adolescentes do tempo pandémico, somos abanados para olhar e escutar a voz destas crianças, vítimas de uma guerra e que também nos vão chegando. Cada dia na vida das crianças deixa uma marca … Que saibamos acrescentar conforto e boas memórias a cada dia.
Viagens forçadas, vidas marcadas e a oportunidade que nos é dada de ajudar a minorar as consequências para as vítimas, para os que estão mais próximos e para os que nos chegam … de forma coordenada e consistente e com a consciência do nosso dever para com os Outros, que podemos bem vir a ser nós.
Quando o documentário terminou ficaram poucas falas. Deixo a palavra de Christoph Meran, embaixador da Áustria em Portugal: “FORTE” …Pois.
Viagem ao Sol
Rita Valadas
Presidente da Cáritas Portuguesa
(Crónica emitida no domingo, 08 de maio de 2022, no espaço “A Opinião”, na TSF