TRÁFICO DE SERES HUMANOS – TESTEMUNHOS E DOCUMENTOS
Tráfico de Seres Humanos – Documentos e Testemunhos
É o mais recente titulo publicado pela Editorial Cáritas. Uma obra que teve a coordenação de António Silva Soares, presidente da direção do Fórum Abel Varzim, responsável pela coordenação deste trabalho que será apresentado no próximo dia 28 de março, às 18:00, no Espaço Santa Catarina – Junta de Freguesia da Misericórdia, na Largo Dr. António Sousa Macedo 7, em Lisboa.
Com prefácio de D. José Traquina, Bispo de Santarém e presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana, que estará também a apresentar a obra.
Tráfico de Seres Humanos – Documentos e Testemunhos
Prefácio
Felicito o Forum Abel Varzim, pela publicação deste livro sobre o “Tráfico de Seres Humanos”, em parceria com a Comissão de Apoio às Vítimas de Tráfico de Pessoas e a Editorial Cáritas. Trata-se, pois, de um assunto grave na sociedade contemporânea em Portugal e no mundo. Estas breves palavras em forma de prefácio, não têm a pretensão de corresponder a uma apresentação exaustiva da obra, mas refletem com verdade o impacto que em mim causou a leitura. O contributo dos diversos autores deste livro, oferece uma informação importante e preocupante sobre a realidade social no mundo contemporâneo, no que respeita ao tráfico de pessoas humanas. No contexto cultural de individualismo, consumismo e indiferença em que vivemos, a leitura deste livro oferece outro registo e outra proposta: um olhar interessado pela realidade humana, uma interpretação personalista cheia de sensibilidade por tudo o que são as ‘novas’ escravaturas humanas e um desafio a não ficarmos na quietude de uma falsa paz da consciência.
O Padre Abel Varzim deixou-se transformar ao longo da vida pela Palavra do Evangelho que ele mesmo comunicava. É referência obrigatória de uma sensibilidade que permite ver com outra luz e com outra profundidade; uma sensibilidade que vale a pena conhecer e cultivar. Não era apenas um comunicador.
O Padre Abel Varzim era o Evangelho em pessoa vivido no meio de dificuldades diversas, com a consciência de que ninguém transforma coisa alguma neste mundo se primeiro não
se transformar a si mesmo. O seu olhar sobre a realidade das mulheres prostitutas no Bairro Alto, em Lisboa, na área geográfica da sua Paróquia onde tinha responsabilidades pastorais, é a continuidade do olhar e da consideração que Jesus teve sobre a mulher pecadora que uns homens apanharam e apresentaram para que Ele a condenasse (cf. Jo 8,1-11).
O Tráfico de Seres Humanos (TSH) é uma das mais graves violações dos direitos humanos do século XXI”. A informação que este livro oferece sobre esta grave violação, incomoda-nos não só pela falta de verdade e de humanismo no mundo, mas também pela diversidade de contextos, formas e meios utilizados no tráfico e exploração da pessoa humana.
Os traficantes e exploradores de seres humanos, são oportunistas da desgraça que se aproveitam das situações de pessoas em fragilidade, pobreza e insegurança para delas se apropriarem e explorarem. “Na verdade, nunca tivemos tantos marginalizados, tantas pessoas consideradas inúteis que se tornam interessantes para a escravatura – são milhões”.
Para os traficantes impera o poder e a ânsia pelo dinheiro, e o meio utilizado é sempre a mentira. Nos últimos anos, segundo informação da Interpol, as verbas conseguidas no tráfico de seres humanos, aumentou e “está cada vez mais próxima dos ganhos com o tráfico de drogas e de armas”.
Os diversos testemunhos que a leitura deste livro nos oferece, constituem um interessante conteúdo para reflexão a partilhar em grupo, sem esquecer os jovens a quem não se deve esconder as diversas promessas e seduções utilizadas pelos traficantes e exploradores de seres humanos. “A maior parte das vítimas têm entre 14 e 26 anos. Muitas vezes a situação acontece à nossa frente e não vemos. Primeiro, porque temos preconceitos. As pessoas acham sempre que as vítimas são ignorantes, muito pobres, ingénuas, vindos de países em desenvolvimento, oriundos de uma aldeia qualquer. A verdade é que essas pessoas são traficadas. E tende a aumentar o número de pessoas instruídas apanhadas por essas redes”.
Uma das consequências do tráfico humano é a situação permanente de medo em que a pessoa traficada se encontra. Medo pelas consequências de represálias na sua própria vida e medo pelas consequentes ameaças aos seus familiares. O medo é diabólico, tolhe a pessoa traficada e escravizada e deixa-a sem capacidade de mudança de estatuto social. Porém, existem exceções e este livro oferece-nos interessantes testemunhos de quem conseguiu coragem para enfrentar o demónio escravizador da vida.
A realidade humana aqui denunciada, oferece também uma leitura sobre o que se passa em Lisboa, continuando a mesma sensibilidade do Padre Abel Varzim que não conseguia ser indiferente à exploração humana. A publicação que agora se apresenta é um ato de coragem para desafiar a verdade acerca do tráfico e exploração de seres humanos também na cidade Capital, revelando que Portugal necessita de leis adequadas para defender as pessoas vítimas desta tragédia humana.
O que faltou na formação de muitas pessoas que continuam a cultivar e a promover a escravatura humana? Porquê assim tanta indiferença? Estamos perante uma leitura que nos é proposta por pessoas responsáveis, com grande sensibilidade de olhar e capacidade para interpretar e decidir profeticamente.
Os autores desta obra, além da denúncia profética, revelam também o cuidado pelo outro que é frágil e necessita de um novo olhar, consideração e atenção. Dão um contributo positivo para erradicar aquilo que o Papa Francisco chama a “cultura do descarte”. As várias pessoas e instituições intervenientes com diversos contributos para este livro, constituem um bom testemunho de observação, análise e partilha. Permite-nos abordar o problema em plano global e nacional – “Portugal ocupa o 9º lugar na Europa, com uma estimativa de 12.800 pessoas em situação de escravatura – e ainda conhecer instituições diretamente envolvidas na libertação de pessoas traficadas e exploradas.
Concede-nos ainda esta publicação retomar a sensibilidade do Papa Francisco que já há muito se preocupa com o tráfico de seres humanos, definindo-o como “uma verdadeira forma de escravatura que, dolorosamente, se tem difundido cada vez mais, que atinge todos os países, inclusive os mais desenvolvidos, e que afeta as pessoas mais vulneráveis da sociedade: mulheres e jovens, meninos e meninas, deficientes, os mais pobres e as pessoas que vêm de situações de desintegração familiar ou social (…). Não podemos permanecer indiferentes perante o conhecimento de que os seres humanos estão a ser vendidos e comprados como objetos”.
A leitura deste livro incomoda ao colocar-nos perante a realidade sobre a qual é necessário um olhar evangélico, a exemplo do Padre Abel Varzim: “Eu não vim para julgar o mundo, mas para salva-lo” (Jo 12,7). Ver, tecer considerações, emitir pareceres é importante, mas insuficiente se não nos envolver num dinamismo libertador do mal que existe e oprime a humanidade. Está patente uma necessária luta para não nos deixarmos cair no reino da indiferença e um desafio espiritual para nos colocarmos na escuta de um Deus Criador que não desistiu da criatura que é sua imagem e semelhança.
Como afirmava o Padre Abel Varzim, as pessoas não podem ser consideradas como ‘escravas de um destino’. Somos criaturas de um Deus que é Pai e nos enviou Jesus para que todos “tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Desejo, pois, que esta publicação tenha grande acolhimento e suscite interpelações que iluminem o caminho a seguir.
+ José Traquina
(Bispo de Santarém e Presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade
Humana)