O Pão é a realidade de todos os dias
O pão é realidade de todos os dias, quotidiana, realidade-símbolo do que sustenta a nossa vida. Mas, exatamente por isso, na história humana, o pão significa também a causa das divisões e das contendas, o motivo pelo qual os povos lutam uns com os outros – para ter mais pão – e por isso as pessoas se tornam inimigas, entram em guerra.
O pão é realidade de todos os dias, quotidiana, realidade-símbolo do que sustenta a nossa vida. Mas, exatamente por isso, na história humana, o pão significa também a causa das divisões e das contendas, o motivo pelo qual os povos lutam uns com os outros – para ter mais pão – e por isso as pessoas se tornam inimigas, entram em guerra.
Eucaristia e vida Moral
por Pe. José Manuel Pereira de Almeida, Assistente Eclesiastico da Cáritas Portuguesa
Gostaria de começar por recordar um texto da Didascália dos Apóstolos (1) (e agradeço ao Prof. Alfredo Teixeira ter-me chamado a atenção para ele) que li na tradução de Jean-Paul Audet (2). Como saberão, «a Didascália é escrita no início do séc. III na Síria» (3). O autor, provavelmente um bispo, recomenda a outros bispos o modo como se devem organizar as celebrações dominicais: «Vós pois, bispos, não sede duros, nem cruéis, nem irascíveis, nem demasiado severos para com o povo de Deus que vos está confiado» (4). Prosseguindo, o autor adverte: «nas reuniões das vossas santas igrejas, ordenai as assembleias com a máxima atenção, distribuindo os lugares aos irmãos, com cuidado e discernimento» (5).
No texto diz-se que os presbíteros devem sentar-se do lado oriental da casa; no meio deles deve estar posta a cadeira (thronos, cathedra) do bispo. Os homens leigos devem colocar-se no lado ocidental e, depois deles, as mulheres. Quanto aos diáconos presentes, um deverá estar atento para indicar aos que chegam os lugares certos a ocupar. Os jovens poderão estar sentados, se houver lugar, senão, ficarão de pé; as raparigas ao pé das mulheres, os rapazes ao pé dos homens. As viúvas deverão sentar-se ‘à parte’ (de facto, o autor ordena meticulosamente cada coisa e o texto anota, quase como refrão, a expressão ‘à parte’ (6)). É dado um grande relevo ao acolhimento de quem quer que possa chegar, seja ele leigo ou diácono, presbítero ou bispo. E trata-se de dar o adequado acolhimento. Por isso o autor nota que «se alguém se apresentar, homem ou mulher, que possua honras na sociedade, tu bispo […] não deves abandonar-te a favoritismos, não deves deixar o serviço da palavra para ires encontrar-lhe um lugar; deves permanecer tranquilamente onde estás, sem interromper o teu discurso. Quando ele entrar, os irmãos que o recebam». Mas o que é verdadeiramente justiça e ‘acolhimento justo’? O texto conclui surpreendendo-nos ainda hoje. Escreve o autor: «mas se se apresentar um pobre, homem ou mulher, dessa assembleia ou de outra, sobretudo se for de idade avançada, e não encontrar lugar, dá-lhe, com todo o teu coração, o teu lugar, bispo, ainda que tu, por isso, te tenhas de sentar no chão»(7).
Ao propor-vos uma reflexão sobre Eucaristia e vida moral, era a partir deste ambiente que vos queria falar(8).
Fazei isto em memória de mim
Um gesto: um pão partido, um cálice que se partilha por um mundo novo – com toda a sua carga simbólica – como realidade da presença de Jesus em que se realiza a nova aliança, na sua vida dada (corpo entregue, sangue derramado). Aquele gesto em que Jesus nos dá a sua vida para que possamos viver, é-nos pedido que o possamos repetir, que o possamos fazer em sua memória.
Na fé, na esperança e na caridade. É-nos dada a fé, no poder reconhecer a salvação presente em Cristo; é-nos dada a esperança, no poder confiar à fidelidade do Pai o nosso próprio futuro de salvação; é-nos dada a caridade, no poder comungar o corpo e o sangue de Jesus, como comunhão com Ele, e n’Ele com o Pai.
Na fé, na esperança e na caridade. É-nos pedida a fé, como resposta de quem sabe discernir o corpo de Cristo (1Cor 11,29); é-nos pedida a esperança de quem, sobre a palavra de Jesus, se confia à realidade eficaz deste acontecimento; é-nos pedida a caridade de acolher a comunhão dada, tornando-nos participantes e mediadores dessa comunhão (9).
“Fazei isto”. Trata-se de ‘fazer’. Fazer com Jesus e como Jesus. Um partir o pão que não é só partir o pão, um oferecer o cálice que não é só distribuir o vinho. Trata-se de fazer; ou seja, de viver, tornados participantes daquele mesmo dar a vida que é o de Jesus. Comer este pão e beber deste cálice é anunciar a morte do Senhor até que Ele venha (1Cor 11,26): o anúncio será verificado ou falsificado (10) enquanto realmente acolhido na vida de comunhão da comunidade cristã, chamada a testemunhar – a indicar tornando-a presente – uma vida renascida da morte redentora de Cristo. A celebração eucarística propõe uma indicação ética precisa: a verdade da vida moral, da nossa experiência, é interpretada com a realidade do sacramento.
Referimo-nos, é claro, ao encontro inter-pessoal que é o fenómeno original-originante de toda a experiência moral. No nosso pessoal encontro com Jesus podemos ler o seu modo de viver a vida como vida entregue, revelando, assim, o sentido decisivo da vida: é a comunhão fraterna, proveniente dessa entrega, que nos é indicada como moralidade plenamente transparente. É, em Jesus, uma realidade presente e possível. Não só desejável, mas realmente possível pela real presença de Jesus, pela comunhão possibilitada por Ele. No seu modo de se fazer próximo temos o modelo e o fundamento de “ir e fazer o mesmo nós também”. No reconhecer o ressuscitado somos libertados do medo de nos entregarmos incondicionalmente, sem prévias garantias de segurança (11).
Reunido o povo
Diz, como sabemos, o número da Instrução Geral do Missal Romano relativo ao início da celebração eucarística: «Reunido o povo, enquanto o sacerdote entra com o diácono e os ministros, começa o canto da entrada. A finalidade desse canto é abrir a celebração, promover a união da assembleia, introduzir no mistério do tempo litúrgico ou da festa, e acompanhar a procissão do sacerdote e dos ministros» (n.47).
“Reunido o povo” – primeira condição – trata-se de fazer com que o acolhimento do presidente – momento imediato – seja, logo à partida, uma oportunidade de promover a “união da assembleia”. Essa união é um processo. Não é estática, fixa. É histórica e dinâmica. Necessária para a celebração eucaristia – a união – se estivéssemos à espera de que ela se estabelecesse plenamente, sem sombras nem rugas, talvez nunca tivéssemos podido celebrar a Eucaristia. Vamos a caminho. De facto, recebemo-la também como dom da Eucaristia. E tornamo-nos protagonistas e responsáveis, tanto quanto de nós depende, pela sua construção. Não depende tudo de nós; mas no que depende de nós, depende absolutamente.
Convocados pela Palavra
Somos reunidos, convocados, pela própria Palavra de Deus. É a Palavra que escutamos em comum que edifica a comunidade crente. E a comunidade nasce e cresce por causa da Palavra acolhida. Tornamo-nos, assim, por iniciativa de Deus, capazes de O escutar e capazes de lhe responder. Com a nossa vida. Somos constituídos ‘interlocutores’ (12), conscientes, livres e responsáveis. E, por isso, a nossa história torna-se (é chamada a ser) história de salvação a partir da poder (dýnamis) da Palavra em que Deus se auto-revela, se auto-comunica.
«Chamei-vos amigos porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi a meu Pai» (Jo 15,15). Uma relação pessoal chamada amizade; já não um ensinamento exterior, mas íntimo. O que requer, numa experiência de oração adulta, uma adequada preparação, como realidade de relação que é. Só assim se poderá viver pessoalmente a dimensão comunitária da Assembleia em que participamos, ou seja, da Igreja.
Para partir o Pão
Os sinais sacramentais do pão e do vinho na nossa celebração eucarística, com as palavras da narração interpretante que os acompanham, completam a figura do interlocutor com a do ‘companheiro’ (13), no sentido etimológico (cum+panis), que partilha o mesmo pão.
Ao dizer pão e vinho dizemos o que é necessário para viver. E também a dimensão da festa, da alegria.
O pão é realidade de todos os dias, quotidiana, realidade-símbolo do que sustenta a nossa vida. Mas, exatamente por isso, na história humana, o pão significa também a causa das divisões e das contendas, o motivo pelo qual os povos lutam uns com os outros – para ter mais pão – e por isso as pessoas se tornam inimigas, entram em guerra.
Ora, precisamente, ao contrário do querer mais pão para si, Jesus diz-nos que a sua vida é um pão partido, repartido, entregue, dado a todos para a vida de todos. Do pão da contenda ao pão partilhado. O que propõe uma interpretação da vida e da história, um significado, um sentido que atinge no íntimo as consciências: não se pode partilhar o mesmo pão sem viver uma vida partilhada, não se pode comungar o mesmo pão e, depois, viver uma vida recusando a comunhão, uma vida auto-centrada, segundo o privilégio do ‘eu’, segundo a lógica do ‘mais pão para mim’.
A liturgia acompanha os sinais do pão e do vinho com as palavras de Jesus que os interpretam: “o meu corpo entregue”, “o meu sangue derramado”: comungando o seu corpo e sangue recebemos d’Ele a força de edificar, na unidade, uma humanidade reconciliada, uma vida de verdadeira comunhão na partilha real, concreta (14).
Na oração post communio da Missa de hoje (Cadeira de S. Pedro), festa que significa a unidade da Igreja, e já celebrada neste dia, em Roma, no século IV, rezamos assim:
Senhor nosso Deus,
que na festa do apóstolo São Pedro
nos fortaleceis com o Corpo e Sangue de Cristo,
fazei que a participação neste mistério redentor
seja para nós sacramento de unidade e de paz.
Ite, Missa est
As palavras com que se dá por concluída a celebração – «Ite, missa est» –, e que já se encontram no Ordo Romanus do século IV, são traduzidas nas diversas línguas vivas de diferentes modos. Creio que a maneira de interpretar o nosso “Ide em paz” será qualquer coisa como “Ide: construí a paz”. A paz, essa incansável solicitude pela vida do outro, essa tensão inquieta para a irredutível fraternidade. Paz e união pedidas e recebidas na comunhão. Para a comunhão.
Convocados pela Palavra fomos constituídos interlocutores. De uma Palavra que não é só para escutar: é também para comer. Alimento de vida; de uma vida que, entregue ao jeito de Jesus, faz que a vida dos outros seja mais viva. “Fazei isto em memória de mim”.
Trata-se de ‘fazer’; ou seja, de viver. Podemos viver com Jesus e como Jesus sobre a terra. Anunciando a sua morte até que Ele venha. Sabemos que só uma vida dada é uma vida eterna.
Pe. José Manuel Pereira de Almeida
Assistente Eclesiástico da Cáritas Portuguesa
Intervenção realizada no dia da Festa da Cadeira de S. Pedro (22 de Fevereiro)
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1 O acesso mais fácil a este texto encontra-se atualmente em J. LEÃO CORDEIRO (ORG.), Antologia litúrgica. Textos litúrgicos, patrísticos e canónicos do primeiro milénio, Secretariado Nacional de Liturgia, Fátima 2004, 244-250.
2 Didascália dos Apóstolos, 12. Cf. J.P. AUDET, Mariage et célibat dans le service pastoral de l’Eglise. Histoire et orientations, Éditions de Sources, Magog (Québec) 1999. As referências seguintes são tiradas da edição portuguesa, Moraes Editora, Lisboa 1967. Cf. também M.D. GIBSON, The Didaskalia apostolorum in Syriac, 109-112; trad. CONOLLY, 119-124; trad. NAU, 112-115, citados de J.P. AUDET, Casamento e celibato no serviço pastoral da Igreja,
Moraes Editora, Lisboa 1967, 121-124.
3 «É um ordenamento eclesiástico-moral, que trata extensamente dos vários estados de vida e ofícios eclesiásticos. O autor não se mostra, de forma nenhuma, fraco, mas abstém-se de toda a aspereza rigorista, o que se pode explicar bem em confronto com o montanismo. […] O texto original grego perdeu-se; só possuímos a tradução completa em siríaco e em outras línguas orientais» (AA.VV., La teologia dei Padri [volume V], Città Nuova Editrice, Roma 1976, 124-125).
4 J.P. AUDET, Casamento e celibato no serviço pastoral da Igreja, 121.
5 Ibidem.
6 Ibidem, 122-123.
7 Ibidem, 123-124.
8 Sigo de perto a reflexão de Sergio Bastianel e a do grupo de investigação em ética teológica, por ele coordenado, que mantemos desde o início dos anos noventa. Como referência geral, indico: S. BASTIANEL, Vita morale nella fede in Gesù Cristo, Ed. San Paolo, Cinisello Balsamo 2005, 153-175.
9 Cf. K. RAHNER, «Elementi di spiritualità nella chiesa del futuro», in T. GOFFI, G. SECONDIN, ED., Problemi e
prospettive di spiritualità, Brescia 1983, Queriniana, 433-443.
10 Uso aqui, como é claro, a terminologia de Karl R. Popper.
11 Cf. S. BASTIANEL, Vita morale nella fede in Gesù Cristo, 169-171.
12 Cf. Idem, 159-164.
13 Cf. Idem, 164-168
14 Sobre as implicações sociais do mistério eucarístico, veja-se BENTO XVI, Exortação apostólica pós-sinodal Sacramentum caritatis, nn. 89-92.