HUMILDADE DESCALÇA
Ouvi, muitas vezes, dizer que «presunção e água benta cada um toma a que quer».
No que respeita à água benta, o ditado popular é hoje menos exacto — mormente após o aparecimento da pandemia. Já quanto à presunção, parece-me que o mercado está bem abastecido: basta considerar a facilidade com que nos tornamos donos da verdade, seguros do que “achamos” e imunes às dúvidas e à busca humilde.
No campo da fé, por exemplo, em vez de tementes, somos temerários; e em vez de acolhermos a graça da misericórdia, convertendo-nos, pensamo-nos farisaicamente limpos e, por isso, dispensados.
Os “outros” — os que não são como nós — esses, sim, até merecem que lhes caia sobre as cabeças a torre de Siloé ou qualquer desgraça natural, como merecido castigo.
Urge meditar o texto do Evangelho que hoje nos é proposto (Lc 13, 1-9) e (re)descobrir que destapa as nossas ilusões, urgindo outra leitura dos acontecimentos: o que nos mata — e mata com a pior das mortes, porque nos mata por dentro — é precisamente a presunção.
Esta, de facto, faz-nos crer que basta ocupar um pedaço de terreno na vinha (Igreja), sem corrigir modos de viver, de estar e de nos relacionarmos. Tal como muitos cristãos de Corinto pensavam ser suficiente a incardinação num povo ou a recepção do baptismo, sem porem de lado a cobiça e a murmuração, por exemplo. Por isso Paulo lhes escreveu: «Quem julga estar de pé, tome cuidado para não cair» (I Cor.10, 10.12)…
Urge cuidarmos de vencer as omissões que nos sossegam por nos levarem a imaginar um Deus que deve fazer o que nos compete. Aliás, se elas redundam em fracassos pessoais ou colectivos, quantas vezes, sem emendarmos a mão, perguntamos: «Mas, afinal, não é “misericórdia” o nome de Deus?… Não quer Ele a conversão e a vida do pecador, mais que o braço firme e a lâmina cortante da moto serra no tronco ainda estéril da figueira?…».
Quer. Quer que queiramos! Mas, para citar de cor o cardeal Kasper, a misericórdia não é uma graça barata!…
Pensamos caminhar e chegar, sem a humildade descalça de Moisés e a aceitação atenta da presença de Deus que vê todas as misérias, ouve todos os clamores, conhece todas as angústias e procura quem aceite servir a Sua libertação.
«Procura QUEM…»
Detenho-me aqui, com palavras de D. António Couto (“Quando Ele abra as Escrituras”, Ano C): atento a todas as situações, «Deus nunca responde alguma coisa. Deus responde sempre ALGUÉM!». Ou seja «somos nós» a Sua resposta hoje.
Nós, servidores da libertação.
Servidores!…
Eis um bom sinal de conversão…
Pe. João Aguiar Campos