O DESAFIO DO TRABALHO DIGNO NUM MUNDO EM MUDANÇA
A Cáritas Portuguesa integra o grupo de oito organizações católicas que lançaram hoje um apelo conjunto, denunciando a precariedade e pobreza dos trabalhadores, no final da conferência anual da Comissão Nacional Justiça e Paz, que decorreu em Lisboa, no Centro Cultural Franciscano, com o tema ‘O desafio do trabalho digno num mundo em mudança’.
Ao analisar a questão do desafio do trabalho digno num mundo em mudança, guiamo-nos por princípios que colhemos na doutrina social da Igreja e que aqui queremos realçar:
Uma dignidade infinita é inerente a cada pessoa humana, para além de toda a circunstância e em qualquer estado ou situação se encontre (Dignitas infinita n. 1).
Através do trabalho, a pessoa, criada à imagem e semelhança de Deus, continua, desenvolve e completa a obra do Criador (Laborem exercens n. 25).
O facto de o ser humano ser criado à imagem de Deus e receber o mandato de dominar a terra não lhe confere um domínio absoluto sobre as outras criaturas. Os textos bíblicos convidam a «cultivar e guardar» o jardim do mundo (Génesis 2, 15). O ser humano pode tomar da bondade da terra aquilo de que necessita para a sua sobrevivência, mas tem também o dever de a proteger e garantir a continuidade da sua fertilidade para as gerações futuras (Laudato sí n. 67 e n. 124).
É através do trabalho que o ser humano o realiza, realizando-o a ele também nas suas múltiplas dimensões, tornando-se “mais pessoa” (Laborem exercens, n. 9). Existe também uma dimensão espiritual no trabalho que possibilita o amadurecimento e a santificação da pessoa (Laudato si’ n. 126).
A economia, a empresa e o trabalho devem servir as pessoas, e não o contrário (“o trabalho para a pessoa, e não a pessoa para o trabalho”). É este o sentido do tradicional princípio do primado do trabalho sobre o capital (Laborem exercens, ns. 7 e 13). Capital, natureza e trabalho devem estar ao serviço das pessoas que integram a comunidade que constitui a empresa (e não o contrário), a sua rendibilidade não pode sacrificar a dignidade e direitos dessas pessoas.
O trabalho humano possui uma intrínseca dimensão social; trabalhar implica trabalhar com outros e para outros (Laborem exercens, n. 51). Daqui surge a necessidade de desenvolver uma conceção correta do trabalho, que nos leve a refletir sobre o sentido e a finalidade da ação humana sobre a realidade e sobre a relação que o ser humano pode ou deve estabelecer com o outro diverso de si (Laudato si’ n. 125).
Para além da diferente valorização do trabalho na sua vertente objetiva, que pode justificar diferenças salariais, há que considerar a sua vertente subjetiva, enquanto expressão da dignidade da pessoa que trabalha, vertente que torna igualmente digno qualquer trabalho, mais ou menos qualificado (Laborem exercens, n. 6).
A justiça de um sistema socio-económico dever ser apreciada segundo o modo como nesse sistema é equitativamente remunerado o trabalho; a melhor forma de realizar a justiça nas relações entre trabalhadores e dadores de trabalho é a que se concretiza nessa remuneração (Laborem exercens, n. 19).
Há que encarar a justiça das relações laborais numa perspetiva universal e para tal serve um «salário básico universal, para que em tempos de automatização e inteligência artificial, em tempos de informalidade e precarização laboral, que ninguém seja excluído dos bens básicos necessários para a subsistência» (Discurso do Papa Francisco no 10º aniversário do Encontro Mundial de Movimentos Populares).
A pessoa que trabalha deseja não apenas receber uma justa remuneração, deseja também que no processo de produção tenha a oportunidade de nele empenhar a sua iniciativa e criatividade, sem que se sinta apenas parte de uma engrenagem ou simples instrumento de produção (Laborem exercens, n. 15).
O trabalho torna possível a constituição de uma família, que é um direito fundamental e uma vocação da pessoa (Laborem exercens, n. 10). As condições do trabalho (incluindo a remuneração e a sua duração) devem favorecer, e não penalizar, a vida familiar do trabalhador (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 294).
Como Deus repousou ao sétimo dia (Génesis, 2,2), também a pessoa, criada à Sua imagem, deve gozar de suficiente repouso e tempo livre que lhe permita cuidar da vida familiar, religiosa, social e cultural. Para tal, deve, antes de mais, ser respeitado o domingo como dia de descanso comum (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 284).
Quando a precariedade laboral se generaliza, geram-se formas de instabilidade psicológica e torna-se difícil a constituição de uma família aberta à vida ou a realização de outros projetos pessoais duradouros (Caritas in veritate, n. 25).
O desenvolvimento integral da pessoa humana no trabalho não contradiz, antes favorece a maior produtividade e eficácia do próprio trabalho (Laborem exercens, n. 43). Uma situação estrutural de insegurança gera comportamentos antiprodutivos e de desperdício de recursos humanos, onde o trabalhador não desenvolve a sua criatividade. Os custos humanos são sempre também custos económicos, e as disfunções económicas acarretam sempre também custos humanos (Caritas in veritate, n. 32).
O trabalho é um bem que deve estar ao alcance de todos aqueles que são capazes de trabalhar; o pleno emprego é um objetivo de todo o ordenamento socio-económico orientado para a justiça e para o bem comum (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 288). Por isso se deve perseguir como prioritário o objetivo do acesso ao trabalho para todos (Caritas in veritate n. 32 e Laudato si’ n. 127).
No combate à pobreza, os subsídios devem ser sempre «um remédio provisório para enfrentar emergências», porque o objetivo é o de conseguir uma vida digna através do trabalho (ter a dignidade de «trazer o pão para casa»). «O trabalho é uma dimensão essencial da vida social, porque não é só um modo de ganhar o pão, mas também um meio para o crescimento pessoal, para estabelecer relações sadias, expressar-se a si próprio, partilhar dons, sentir-se co-responsável do mundo e, finalmente, viver como povo» (Fratelli tutti, n. 162).
As organizações sindicais desempenham uma missão em prol da justiça, são um fator construtivo de ordem social e de solidariedade e, portanto, um elemento indispensável da vida social (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 288).
A iniciativa económica é expressão da inteligência humana e da exigência de responder às necessidades das pessoas de modo criativo e colaborativo (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 343). A criação e manutenção de postos de trabalho por parte dos empresários é uma forma de concretizar a função social da propriedade privada e o destino universal dos bens (Centesimus annus, n. 43). A atividade empresarial orientada para produzir riqueza e melhorar o mundo para todos pode ser uma maneira muito fecunda de promover o bem comum da região onde se desenvolve (Laudato si’ n. 129)
Nas grandes decisões estratégicas e financeiras, os empresários não podem seguir apenas critérios de natureza financeira ou comercial, esquecendo a dignidade humana dos trabalhadores, que são o património mais precioso da empresa (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 344). Renunciar ao investimento nas pessoas para se obter maior receita imediata acaba por se revelar como uma má opção para a sociedade (Laudato si’ n. 128).
Diante de todas as inovações e transformações do mundo do trabalho ditadas pela tecnologia, há que evitar o erro do determinismo; essas inovações e transformações devem ser orientadas de modo a que sirvam para o desenvolvimento da pessoa, da família, das sociedades e de toda a humanidade (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 377).
Baseados nestes princípios que colhem da doutrina social da Igreja, e analisando a situação portuguesa atual, as organizações subscritoras deste manifesto declaram o seguinte:
Em Portugal persiste o fenómeno dos “working poor” (trabalhadores com rendimentos que não lhes permitem superar a pobreza), persiste o trabalho ilegal e/ou clandestino, persistem, ainda, elevados índices de precariedade, e não desapareceu a necessidade de combater as desigualdades no trabalho entre homens e mulheres.
A precariedade (num quadro de legalidade, ou não, com recurso frequente aos falsos “recibos verdes”) atinge hoje grande número de trabalhadores e de modo particular os jovens, o que em muito dificulta a realização dos seus projetos pessoais, como o de constituir família.
Novas formas contratuais, como as relativas ao trabalho em plataformas digitais, acentuam essa precariedade e não protegem devidamente direitos laborais anteriormente consolidados.
Impõe-se em muitas situações a redução e reorganização dos horários de trabalho, de modo a que estes não prejudiquem injustificadamente a vida familiar ou outras formas de realização pessoal para além da esfera laboral; nesse sentido, é de limitar o trabalho ao domingo.
A transição digital e a transição energética contribuírão para a destruição de muitos empregos e a reconversão profissional dos trabalhadores afetados não será isenta de dificuldades; para enfrentar esse desafio exige-se um esforço redobrado de cooperação e solidariedade que mobilize o Estado e a sociedade civil.
A inteligência artificial não deverá substituir empregos e funções que só qualidades especificamente humanas permitem desempenhar de modo conforme ao bem integral das pessoas.
Não se têm registado os desejáveis progressos no âmbito da segurança no trabalho; continua a ser anormalmente elevado o número de acidentes de trabalho e de doenças profissionais.
A valorização do trabalho agrícola depende da valorização dos produtos agrícolas; o Estado português e a União Europeia devem regular o mercado de modo a que o agricultor não continue a ser o “elo mais fraco” entre “o prado” e “o prato”.
A média de idades dos trabalhadores agrícolas portugueses ronda os sessenta e quatro anos; este facto acentua o perigo de acidentes e explica a necessidade de recurso a trabalhadores imigrantes.
O trabalho de imigrantes na agricultura e noutros setores é indispensável, mas exige um eficaz controlo das condições em que se realiza: salários e habitação dignos, plena integração social.
É importante tornar os mecanismos existentes de proteção social sustentáveis e cada vez mais justos e equitativos.
Um dos melhores caminhos para efetivar a justiça social e o trabalho digno é o de aumentar os níveis de autorregulação por parte dos parceiros sociais, isto é, aumentar e promover o Diálogo Social, nomeadamente através da negociação coletiva.
O caminho para uma sociedade mais justa só se alcança com melhor distribuição da riqueza, com melhores condições de trabalho que promovam a saúde e bem-estar dos trabalhadores, com formação profissional de qualidade e com o aumento da produtividade; por consequência, teremos empresas mais saudáveis e trabalhadores mais motivados.
Lisboa, 12 de outubro de 2024
Ação Católica Rural
Associação Cristã de Empresários e Gestores
Cáritas Portuguesa
Comissão Nacional Justiça e Paz
Federação Solicitude
Juventude Operária Católica
Liga Operária Católica – Movimento dos Trabalhadores Cristãos
Metanoia – Movimento Católico de Profissionais