O mundo está em falta para com os trabalhadores humanitários e as pessoas a quem servem
Por todo o mundo, os trabalhadores humanitários continuam a estar presentes, dia após dia, na linha da frente das crises. Mas os sistemas de que dependem estão sob uma pressão crescente, e a liderança da UE é agora mais necessária do que nunca.
O sistema humanitário está em crise. Não apenas devido a cortes orçamentais significativos e ao forte impacto desses cortes sobre as pessoas em necessidade, mas também devido ao aumento dos ataques contra trabalhadores humanitários em todo o mundo. A linha da frente deixou de ser apenas perigosa — está a ser sistematicamente atacada.Neste Dia Mundial da Ajuda Humanitária, é importante que todos nós reservemos um momento para homenagear aqueles que perderam a vida ao serviço da humanidade e recordar os que continuam, dia após dia, a estar presentes na linha da frente das crises.
Não se trata de cerimónias ou aplausos. Trata-se de testemunhar a coragem e de estar ao lado daqueles que escolhem a compaixão quando tudo à sua volta se desmorona.
As crises na Palestina, no Sudão, na República Democrática do Congo, na Ucrânia, em Myanmar e no Haiti não são novas. Mas a violência ultrapassou aquilo que julgávamos possível. A brutalidade é mais profunda e a dimensão é avassaladora.
Não estamos apenas a assistir ao sofrimento; estamos a assistir ao lento desmoronar dos próprios princípios destinados a proteger civis. O direito internacional está a ser posto à prova de formas que nunca tínhamos visto. As normas internacionais de ajuda humanitária e de direitos humanos em que confiamos, contra a repressão, o abuso e a desumanização, estão a ser esticadas até ao ponto de rutura.
O sistema e os líderes mundiais estão a falhar-lhes — e, ainda assim, os trabalhadores humanitários continuam presentes. Muitas vezes quase sem proteção. Muitas vezes com recursos mínimos. Porque, para eles, este trabalho não é simbólico — é sobrevivência. Para as comunidades que servem, é a última tábua de salvação.
Só em 2025, 265 trabalhadores humanitários perderam a vida e outros 196 foram feridos, raptados ou detidos — 95% deles eram trabalhadores humanitários locais. Um recorde desolador e um lembrete severo dos riscos enfrentados por aqueles que estão mais próximos da crise. Pelo menos 173 trabalhadores humanitários foram mortos em Gaza por Israel.Devemos-lhes mais do que reconhecimento. Devemos-lhes ação. Devemos-lhes sistemas que realmente funcionem, leis que realmente se cumpram e uma solidariedade que não desapareça quando as manchetes se apagam.
Estas não são apenas falhas. São escolhas. Os governos estão a afastar-se das leis que eles próprios escreveram. As instituições estão demasiado comprometidas ou demasiado receosas para agir. Os civis são deixados a morrer sob ataques incessantes ou vítimas de fome deliberada. Os trabalhadores humanitários ficam encarregues de recolher os pedaços, sem proteção, sem financiamento e sem apoio.
As normas destinadas a proteger civis estão a ser erodidas. Sem ação por parte dos líderes da UE e de líderes em todo o mundo, elas não sobreviverão.
Nada ilustra isto de forma mais clara do que Gaza, onde o controlo militar israelita sobre a assistência humanitária transformou a ajuda em arma e centenas de palestinianos foram mortos simplesmente por tentarem aceder a alimentos. Apesar de o seu próprio relatório interno ter identificado “indícios” de violações do direito internacional — incluindo punição coletiva e a fome utilizada como arma de guerra — a UE falhou em tomar uma ação decisiva e, em vez disso, os Estados-Membros da UE permanecem cúmplices destas violações. A UE continua a negociar o acesso humanitário sem compromissos vinculativos, enquanto ignora as violações diárias do direito internacional humanitário e os assassinatos de civis e trabalhadores humanitários. Ao mesmo tempo que aceita aumentos limitados no número de comboios de ajuda, estes pequenos gestos ficam muito aquém do necessário e não têm em conta a quantidade real de assistência que chega às pessoas em necessidade.
Perante estas realidades, como podemos reforçar e proteger o que funciona e mudar o que não funciona? A UE pode desempenhar um papel decisivo na defesa dos princípios e dos quadros jurídicos que regem o setor humanitário, rejeitando sistematicamente os duplos critérios, promovendo ativamente a responsabilização de todos os atores e utilizando a sua influência política e diplomática para garantir o acesso humanitário sem entraves às populações em necessidade.
Proteger os princípios humanitários é uma questão de vida ou de morte. A imparcialidade significa que a ajuda humanitária vai para onde é necessária, não para onde é politicamente conveniente. A neutralidade permite o acesso quando a diplomacia falha e constrói confiança com as comunidades afetadas. A independência permite que as organizações ajam apenas de acordo com as necessidades das pessoas afetadas, livres de objetivos políticos, militares ou económicos. A humanidade é a força orientadora de cada resposta: médicos a trabalhar sob fogo, psicólogos a apoiar sobreviventes de violência e exploração, voluntários a reunir famílias, equipas a distribuir alimentos a pessoas que perderam tudo.
Estes princípios vivem através de pessoas como médicos, enfermeiros, assistentes sociais, líderes comunitários, grupos religiosos — muitas vezes sem remuneração e sem reconhecimento. Da mesma forma, as organizações-membro da Caritas estão presentes onde a ajuda é mais necessária, prestando assistência vital antes, durante e depois das emergências, através do trabalho incansável de milhares de funcionários e voluntários.
Mas os princípios têm de ser acompanhados por ações concretas, por ajuda que chegue a quem precisa, por financiamento sustentável e por um sistema humanitário eficaz. Quando os governos apoiam uma ação humanitária baseada em princípios, não estão apenas a fazer o que é certo — estão a investir em resiliência, paz e coesão social.
Já vimos a ação humanitária baseada em princípios funcionar. No Sudão do Sul, a ajuda humanitária ajudou a evitar a fome e manteve vivas negociações de paz frágeis. No Bangladesh, estabilizou a crise dos Rohingya. Na África Ocidental, impediu que o Ébola se tornasse uma catástrofe global. Na Síria e na Turquia, evitou deslocamentos secundários após os terramotos. Na Ucrânia, ajudou a preservar a sociedade civil sob cerco.
Este é o momento para os líderes da UE se voltarem a comprometer com os princípios que definem a ação humanitária. É tempo de investir em sistemas que protejam vidas e defendam a dignidade, e não apenas de conter as crescentes vagas de violência e fome. É tempo de os Estados-Membros da União Europeia se unirem, colocarem de lado considerações políticas e assumirem uma posição firme contra as violações do direito internacional humanitário. Porque, no fim, a assistência humanitária não é apenas sobre ajuda imediata — é sobre cultivar resiliência, justiça e esperança.
Autor: Abriel Schieffelers, Caritas Europa, Humanitarian Advocacy Officer
Texto adaptado de “Honoring the fallen, defending the living”, de Christian Modino Hok, Diretor Humanitário da Caritas Internationalis.